A
CURA PELA FÉ |
O
caso que vamos tratar é narrado por três evangelistas, autores
dos três primeiros livros do Novo Testamento, intitulados Evangelhos Sinópticos.
Ouçamos como o descreve Marcos, no cap. V, versos 25 a 34.
— Ora, uma mulher, que durante doze anos padecia de uma hemorragia, e
que tinha sofrido bastante às mãos de muitos médicos e
gastado tudo quanto possuía, sem nada aproveitar, antes ficando cada
vez pior, tendo ouvido falar a respeito de Jesus, veio por detrás entre
a multidão e tocou-lhe a capa, porque, dizia: Se eu tocar somente as
suas vestes, ficarei curada. No mesmo instante cessou a hemorragia, e sentiu
no corpo que estava curada no seu flagelo. E Jesus, conhecendo logo por si mesmo
a virtude que dele saíra, virando-se no meio da multidão, perguntou:
Quem tocou as minhas vestes? Responderam-lhe seus discípulos: Vês
que a multidão te aperta, e perguntas: Quem me tocou? Mas ele olhava
ao redor para ver quem isto fizera. Então a mulher, receosa e trêmula,
cônscia do que nela se havia operado, veio, se prostrou diante dele e
declarou-lhe toda a verdade. E Jesus. lhe disse: Filha, à tua fé
te curou; vai-te em paz, e fica livre do teu mal.
Geralmente, quando se fala em qualquer acontecimento em que entra em jogo a
fé, todos imaginam que se trata de algo obtido sem esforço, sem
trabalho nem porfias: uma dádiva do céu, uma graça, um
favor, e mais que tudo isso uma distinção ou privilégio
que a Providência houve por bem conceder discricionária e sumariamente
a alguém. Se o caso é de cura, todos a encaram como alcançada
graciosamente, num dado momento, independente dos antecendentes, isto é,
sem ligação alguma com o passado da pessoa favorecida. Este conceito,
apressamo-nos em declarar, sem receio de constestação, é
errôneo, não condiz com a realidade do que podemos denominar —
conquista da fé.
Que a fé seja um poder, uma expressão de força, todos concordam.
Cumpre, porém, considerar que o poder é subjetivo, é abstrato,
só se manifesta pelo que produz, portanto, pelas obras. Aí, no
terreno concreto, é que a fé se revela com força capaz
de incalculáveis realizações. A fé é uma
virtude complexa, porque em sua estrutura entram vários elementos que,
considerados isoladamente, são outras tantas virtudes que dela derivam,
constituindo partes integrantes suas.
Para melhor esclarecimento sobre as características da fé, vamos
meditar, escalpelando o caso desta mulher; pois assim apreendemos facilmente
o que, talvez com justeza, possamos classificar de — psicologia da fé.
Reportemo-nos aos acontecimentos que precederam à cura da mulher hemorrágica.
Ela vinha sofrendo essa enfermidade, havia doze anos. É um período
bem longo para suportar semelhante moléstia. A despeito disso, a doente
não desanimou, não se entregou ao desespero, não perdeu
a esperança. Manteve-se em atitude otimista e corajosa, porfiando por
conseguir a saúde perdida. Deu provas de resignação, paciência
e humildade.
Dirão, talvez: Onde fui eu buscar semelhantes predicados para adornar
o caráter dessa mulher? Responderei que não estou fantasiado,
porém mantendo-me dentro da mais severa realidade. A vida dessa enferma,
os seus antecedentes, os fatos positivos que com ela se passaram dão
testemunho do que ora afirmamos. E quereis, por acaso, testemunho mais valioso
e menos insuspeito que aquele fornecido pelos fatos, pelo procedimento do indivíduo?
Procuremos sondar a atitude e a conduta da nossa personagem, pois, se os dados a seu respeito ficaram registrados no Evangelho, foi para servir de lição e de exemplo às gerações cristãs de todos os tempos. Ela penou durante doze anos: foi, portanto, uma sofredora. Demonstrou possuir fé, não só pelo fato de tocar o manto de Jesus e curar-se — notemos bem esta circunstância — mas, também, porque sempre agiu diligenciando os meios de curar-se. Tanto assim que esteve bastante tempo nas mãos dos médicos, gastando, sem resultado, todos os recursos pecuniários que possuía — diz o relato evangélico.
Esse
procedimento importa num valioso comprovante de fé, visto como não
se trata de um gesto de momento, mas de conduta regular, seguida durante doze
anos consecutivos. Semelhante perseverança importa na presença
da fé, porque esta virtude gera aquela outra. A mulher foi paciente.
É a paciência que nos faz perseverar, jamais permitindo que desanimemos
ou percamos o controle dos nossos atos. Paciência é atestado de
valor, de coragem nos dias de adversidade e, sobretudo, revela que somos senhores
de nós mesmos, porque já realizamos a maior das conquistas, da
qual dependem todas as outras — a conquista de nós mesmos.
Paciência, pois, não é inércia nem submissão
incondicional aos reveses que nos possam atingir; é virilidade de espírito;
é energia moral, que nos faz receber os acontecimentos desfavoráveis
com bom ânimo, aparando os golpes da adversidade com o escudo da fé.
É a paciência que nos conserva a calma no meio das atribulações,
permitindo que a nossa razão funcione regularmente e mostrando como poderemos
resolver os nossos problemas e neutralizar os contratempos que nos afligem.
Comumente fazem da paciência um juízo falso. Por isso costumamos
ouvir frequentemente esta frase: fulano perdeu a paciência, diante dos
insultos que lhe dirigiu beltrano. Eu não me contive, perdi a paciência
e disse a sicrano tudo quanto me ocorreu à mente. Ora, tais expressões
denotam a ignorância. Esta virtude não se perde, como se perde
o lenço, o lápis, os óculos, ou uma soma de dinheiro.
Paciência possui-se ou não se possui — porquanto paciência
quer dizer — domínio sobre si mesmo. A pessoa que diz — não
me contive, perdi a paciência, etc. — confessa implicitamente a
sua fraqueza. Pois, se não se conteve é porque não se domina;
e não se domina, porque não conquistou paciência. Não
digamos, portanto, jamais: perdi a paciência, porque ninguém pode
perder aquilo que não tem. Confessemos nossa debilidade moral declarando:
ainda não tenho paciência, por isso não consigo dominar-me
em certas conjunturas.
Pois bem, aclarado este pormenor, podemos constatar que a enferma, ora em apreço,
era um exemplo de paciência. Realmente, ela se portou como quem controla,
como que está de posse de si mesma, suportando, no decurso de doze anos,
o distúrbio físico que a flagelava, sem esmorecimento, porfiando
sempre, procurando aqui e acolá, deste ou daquele modo, o restabelecimento
da sua saúde avariada. Outro excelente predicado demonstrou a personagem
deste episódio: a humildade.
Sem humildade não pode haver constância e firmeza, nem resignação,
esperança e paciência. Note-se, agora, a correlação,
a interpendência em que se encontram estas virtudes, constituindo a trama
da fé. É a humildade que nos permite perseverar sem desespero,
indignação ou revoltas. O homem humilde recebe com paciência
os insucessos e recomeça a tentativa frustrada, suportando os reveses
com bom ânimo.
E porque é humilde, conserva a esperança, insiste pacientemente,
sofre com resignação, porfia, luta e vence. O orgulhoso é
intolerante; padece demasiadamente, quando perde a partida. Revolta-se, blasfema,
retrai-se e acaba confundido, cumprindo-se nele a sentença evangélica:
Aquele que se exalta será humilhado.
Também a propósito da humildade, os homens do século ajuízam
temerariamente. Querem ver na humildade a sujeição irrestrita,
a abdicação da personalidade, a apatia muçulmana diante
do infortúnio: chegam mesmo a confundi-la com subserviência e com
a baixeza!
Humildade
é padrão dos caracteres varonis; é expressão de
valor; importa na serena coragem, diante das emergências difíceis
e penosas, atitude esta própria das almas fortes, dos Espíritos
que grangearam alto grau na escala da evolução. Consideremos,
em seguida, para completarmos nossa observação, outros aspectos
que distinguem a fé verdadeira.
A nossa paciente, segundo narra o texto, esgotou os recursos próprios,
as possibilidades ao seu alcance. Procurou solucionar o seu caso, mediante os
processos comuns, dos quais podia valer-se. Só depois de malogradas todas
as tentativas naquele terreno, é que ela recorreu ao supremo valimento
da graça divina. Esta faceta da sua norma de conduta indica o bom-senso
que possuía e o alto critério em que colocava o apelo aos meios
extra ou supranormais.
Se tudo de que necessitamos pudéssemos alcançar sem trabalho,
sem esforço, certamente ficaríamos estacionários em nossa
impotência. O progresso resulta da luta, como da luta decorre o mérito.
A tendência geral, porém, é ver na
fonte espiritual, nas forças ocultas do plano celeste, o meio de nos
isentarmos de trabalhos, obtendo tudo graciosamente.
É assim que os simplistas encaram o Espiritismo. Em se tratando de enfermidades, esses ingênuos imaginam que o advento da Terceira Revelação significa a abolição da medicina e da farmacopéia terrena. Os facultativos nada mais terão que fazer, visto como os Espíritos os substituirão no seu mister de assistir aos enfermos. Falsa visão, erro palmar, semelhante conceito. O Espiritismo não vem destruir a lei natural que regula a evolução humana.
Vem, antes, inspirar os médicos no seu delicado mister de curar, quando possível, de suavizar as dores físicas, de consolar e confortar sempre os enfermos. Vem-lhes dar a compreensão de que o exercício da medicina é um sacerdócio sagrado, é missão de humanidade e de amor, antes de ser profissão. O Espiritismo visa esclarecer aos Hipócrates de todos os tempos as grandes responsabilidades que pesam sobre seus ombros, como confidentes, que são, das fraquezas, dos padecimentos e dos íntimos segredos dos seus semelhantes.
Eles
são os legítimos sacerdotes da caridade, no exercício de
árdua e espinhosa tarefa cujo desempenho escolheram, visando, talvez,
a outros objetivos que a experiência lhes vai demonstrar serem errôneos
e fatais. Em suma, o Espiritismo veio espiritualizar, santificar, e não
proscrever ou abolir a medicina. Se os médicos, em sua generalidade,
não enxergam este fato, os espíritas têm obrigação
de vê-lo e proclamá-lo em voz alta, sem rebuços nem subterfúgios.
Se nem sempre os esculápios terrenos curam, outro tanto sucede com os
do Além, porquanto ninguém pode interromper ou sustar o curso
das provas e das expiações resultantes da lei da causalidade,
lei natural e inviolável, mediante a qual se exerce a soberana e indefectível
justiça.
A finalidade da Medicina expressa no aforismo latino — Sedare dolorem,
opus divinus esí — se enquadra e ajusta perfeitamente na finalidade
do Espiritismo, cujo objetivo palpita na sentença de Kardec: Fora da
caridade não há salvação. É assim que a ciência
e a religião, a fé e a razão se combinam e se entrosam
como partes de um todo indissolúvel que os sectaristas, militantes em
ambos os terrenos, numa luta inglória e perniciosa, debalde pretendem
separar e desunir. O papel da ciência, à luz da Terceira Revelação,
não é destruir, reduzindo a ruínas e escombros cidades
e nações, talando campos e ceifando vidas, como ora se faz, criminosamente,
no Velho Continente; mas sim, edificar sempre, defendendo e conservando, quanto
possível, a existência humana, como há de fazer, em breve,
aqui na América, a ciência santificada pela fé, máxime
no Brasil — pátria do Evangelho, coração do mundo.
A graça não anula a lei, antes representa o seu complemento. Assim
como a revelação mosaica precedeu à messiânica, prefigurando
a primeira lei, e a segunda, a graça, assim também nós
devemos primeiramente cumprir a lei, para depois fazermos jus à graça.
Quando esgotarmos os nossos recursos pessoais, sem havermos desanimado nem esmorecido
na luta, intervirão em nosso favor as potências celestiais. A propósito
deste assunto, vamos citar um caso, para ilustrar nossa tese.
Quando Jesus se abeirou do túmulo onde jazia Lázaro, antes de reatar e estreitar os laços fluídicos que ligam a alma ao corpo, promovendo a ressurreição anunciada, ordenou aos discípulos que removessem a pedra que fechava a entrada do sepulcro. Depois de obedecerem àquela ordem, Jesus agradece ao pai celestial o seu auxílio e clama solenemente: Lázaro! sai para fora! Consumou-se, então, o prodígio. E porque Jesus não faz cair a pedra? Acaso teria nisso qualquer dificuldade? Não poderia fazer o menos quem fez o mais? Certamente que sim; no entanto, Ele determinou que os homens fizessem o que estava ao seu alcance fazer, agindo em seguida, no terreno onde aos mortais não era dado intervir.
Por não satifazerem esta condição, muitos deixam de obter o que ardentemente aspiram. Aproveitemos deste episódio a grande lição que encerra. Tiremos a pedra — e depois aguardemos o milagre. Voltemos à mulher altamente favorecida. Ela obteve a mercê de sua cura, porque a lei, nela já se havia cumprido. A ordem natural não foi alterada, e não o será em hipótese alguma. Após mais de dois lustros de sofrimento; depois de empobrecida, pois seus bens foram absorvidos pelos honorários médicos e aquisição de medicamentos, e de ser assim experimentada, a nossa irmã sofredora se lembra que ainda havia um recurso: Jesus de Nazaré! Ela teve notícias das curas assombrosas que o Rabi vinha fazendo em toda a Galiléia.
Concentrada em si mesma, a enferma conjeturou: Ele cura sem ministrar drogas; seu poder é exercido espiritualmente. Dele procede uma força incompreensível que restitui a saúde num dado momento. Para que, pois, incomodá-lo com pedidos? Procurarei, apenas, estabelecer um contato com Ele, através do qual sua potência curadora me atingirá, e eu ficarei sã. Assim pensou e assim agiu. Rompendo com dificuldade a multidão que cercava o Médico que sara as chagas da alma e do corpo, ela consegue tocar de leve a fímbria de sua capa.
Uma onda de vida nova percorre os seus membros de alto e baixo: estava curada! Assinalemos o seguinte detalhe: até na maneira de valer-se da faculdade curadora de Jesus, essa mulher aplicou o raciocínio, fez uso da razão, o que denota a perfeita serenidade de ânimo em que se conservava, graças à influência de sua fé. Alcançado o seu intento, a nossa heroína pretendeu conservar-se incógnita, mas o Senhor não o permitiu. Provocou propositadamente o alarde, interrogando os discípulos: Quem me tocou? Eles retrucaram: Como havemos de saber quem te tocou, achando-nos assim cercados de gente que nos comprime por todos os lados?
O Mestre insiste: Alguém me tocou de modo especial, pois percebi que de mim saiu uma virtude, isto é, se desprendeu certa soma de energia espiritual que alguém atraiu. A mulher, então, confusa e acanhada, se apresenta em público e declara que ela era a beneficiada. Jesus conclui: Filha, a tua fé te curou; vai-te em paz e fica livre do teu mal. Por que teria agido de tal modo o Divino Educador? Pretenderia, acaso, alcançar notoriedade e fama com aquela cura? Absolutamente, não. Seus atos e atitudes visam, invariavelmente, ao bem da humanidade.
Ele
fez a beneficiada vencer o acanhamento que a dominava, por dois motivos poderosos:
primeiro, para que este acontecimento ficasse registrado e, passando, de geração
em geração, chegasse até nossos dias a sublime e proveitosa
lição que encerra; segundo, porque ninguém deve sentir-se
constrangido ou embaraçado, quando se trata de dar testemunho da verdade.
A coragem moral de afirmar um fato, que se passou consigo, é dever de
todo o homem que se preza, sendo, por isso, digno de si mesmo. Atestam covardia
e vileza de caráter aqueles que, por preconceito social, receio de crítica,
ou por interesses subalternos, ocultam ou dissimulam os fenômenos espirituais
que com eles se passaram.
Façamos, pois, como essa nossa irmã. Empreguemos esforços
para afastar os tropeços e obstáculos que embargam os nosos passos,
mantendo-nos distante daquele que nos chama, dizendo; Vinde a mim, todos vós
que vos achais aflitos e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Assim como esta
mulher rompeu a multidão, estabelecendo o seu contato com o Filho de
Deus, vamos também romper os preconceitos sociais, vencer as nossas fraquezas
próprias, jugular as nossas paixões inferiores e nos achegar ao
Senhor, para tocarmos a orla das suas sagradas vestiduras, recebendo a magia
do seu divino influxo, que sarará as nossas mazelas do corpo e as nossas
chagas da alma.
Vinícius